Pai,
voltei para Altamira. Você estava viajando quando eu vim, mas agora a vovó me disse que o senhor está por aqui também. Que bom que vamos nos encontrar. Você vai ver como estou me alimentando direitinho. Estou comendo arroz integral, peixe assado ou cozido, nada de frito, tomando os remédios e até bebendo o tal do suco verde que o dôtor receitou. O estômago até parou de doer. Acho que a úlcera tá curando. Será que mês que vem já dá pra bebemorar?
Vou parar de falar de doença, porque vai dar brecha pro senhor me ralhar. Vamos ao que interessa: a babilônia da camaleônica Altamira.
voltei para Altamira. Você estava viajando quando eu vim, mas agora a vovó me disse que o senhor está por aqui também. Que bom que vamos nos encontrar. Você vai ver como estou me alimentando direitinho. Estou comendo arroz integral, peixe assado ou cozido, nada de frito, tomando os remédios e até bebendo o tal do suco verde que o dôtor receitou. O estômago até parou de doer. Acho que a úlcera tá curando. Será que mês que vem já dá pra bebemorar?
Vou parar de falar de doença, porque vai dar brecha pro senhor me ralhar. Vamos ao que interessa: a babilônia da camaleônica Altamira.
Tenho que lhe dizer que o senhor chegou em um péssimo momento. Os trabalhadores de Belo monte estão na cidade. Receberam o salário. A cidade fica uma loucura até lá pra metade do mês, quando o dinheiro acaba.
Gente pra todo lado. Lojas e bancos lotados. Fila. Fila. Fila. Fila.
A única coisa relativamente boa é o horário dos bares, que normalmente fecham meia noite, uma hora, mas quando eles estão na cidade funcionam até umas 5 horas da manhã. Mas isso nem é tão bom, porque sempre rola uma brigazinha aqui, outro desentendimento pra lá. O resultado são os noticiários dizendo que quatro morreram em um único fim de semana.
Quase sempre quando eles estão por aqui evito sair. Volto pra casa cedo e não consigo dormir com o som dos carros. É horrível para qualquer mulher andar na rua. Parece que os caras nunca viram mulher na vida. Outro dia um foi mexer comigo e eu já “por aqui” fui inventar de responder como faço aí em Belém. Mandei alguns palavrões.
Gente pra todo lado. Lojas e bancos lotados. Fila. Fila. Fila. Fila.
A única coisa relativamente boa é o horário dos bares, que normalmente fecham meia noite, uma hora, mas quando eles estão na cidade funcionam até umas 5 horas da manhã. Mas isso nem é tão bom, porque sempre rola uma brigazinha aqui, outro desentendimento pra lá. O resultado são os noticiários dizendo que quatro morreram em um único fim de semana.
Quase sempre quando eles estão por aqui evito sair. Volto pra casa cedo e não consigo dormir com o som dos carros. É horrível para qualquer mulher andar na rua. Parece que os caras nunca viram mulher na vida. Outro dia um foi mexer comigo e eu já “por aqui” fui inventar de responder como faço aí em Belém. Mandei alguns palavrões.
Pra quê?!
O cara, que passava com a moto bem devagar ao meu lado, acelerou um pouco e parou um quarteirão à frente, bem na esquina de casa. Tirou o capacete e ficou me encarando. Acho que esperava eu passar pra me chamar de “vadia, puta, caceteira, mal comida” ou qualquer coisa pior. Minha coragem desabou. Dei meia volta, retornei para orla e esperei até que ele fosse embora.
Sei que você me ensinou a não chamar palavrão, mas às vezes parece que só um palavrão bem articulado serve pra expressar os sentimentos. Eu diria o que? “Senhor, por gentileza, não me assedie!”? Sei também que isso pode acontecer em qualquer lugar, mas acho que por aqui a concentração de assédio por metro quadrado deve ser bem elevada, olha. Tira-se pelo índice de estupros, que disparou desde o início das obras.
Mesmo com todos esses estresses me arrisco a sair para me estressar um pouco mais. É interessante perceber a movimentação na cidade quando eles estão por aqui. É bacana ouvir as conversas nas filas:
“Ô sô, o Gilberto tá por onde?”
“Rapáááiz, ele tá lá pro Pimental, ó. E tu tá ôndi?”
“Eu tô lá no Canais, sô”.
“Arré! Marrélonge esse canteiro! E aí? Guenta até quando?”
“Sei não ainda. Acho que até fim do ano"
"E tu, Antonio, vai mais não, é?”
"Acho que mês que vem volto pra Manaus”.
Pai, com gente de tantos lugares, só aqui eu poderia encontrar o melhor cabeleireiro que já vi na vida. O senhor sabe que sou péssima com esse negócio de pintar e cortar o cabelo. Sempre saio reclamando, seja porque cortaram demais, de menos, não fizeram o que eu queria. Gostei tanto do cabeleireiro que confiei nele para picotar o cabelo! Tá curtíssimo!!!
O cabeleireiro é cearense, mas mora aqui em Altamira desde 1972, auge da colonização dirigida dos militares com a abertura da Transamazônica, outra obra faraônica, tal como Belo Monte e a tal de Belo Sun.
O cara, que passava com a moto bem devagar ao meu lado, acelerou um pouco e parou um quarteirão à frente, bem na esquina de casa. Tirou o capacete e ficou me encarando. Acho que esperava eu passar pra me chamar de “vadia, puta, caceteira, mal comida” ou qualquer coisa pior. Minha coragem desabou. Dei meia volta, retornei para orla e esperei até que ele fosse embora.
Sei que você me ensinou a não chamar palavrão, mas às vezes parece que só um palavrão bem articulado serve pra expressar os sentimentos. Eu diria o que? “Senhor, por gentileza, não me assedie!”? Sei também que isso pode acontecer em qualquer lugar, mas acho que por aqui a concentração de assédio por metro quadrado deve ser bem elevada, olha. Tira-se pelo índice de estupros, que disparou desde o início das obras.
Mesmo com todos esses estresses me arrisco a sair para me estressar um pouco mais. É interessante perceber a movimentação na cidade quando eles estão por aqui. É bacana ouvir as conversas nas filas:
“Ô sô, o Gilberto tá por onde?”
“Rapáááiz, ele tá lá pro Pimental, ó. E tu tá ôndi?”
“Eu tô lá no Canais, sô”.
“Arré! Marrélonge esse canteiro! E aí? Guenta até quando?”
“Sei não ainda. Acho que até fim do ano"
"E tu, Antonio, vai mais não, é?”
"Acho que mês que vem volto pra Manaus”.
Pai, com gente de tantos lugares, só aqui eu poderia encontrar o melhor cabeleireiro que já vi na vida. O senhor sabe que sou péssima com esse negócio de pintar e cortar o cabelo. Sempre saio reclamando, seja porque cortaram demais, de menos, não fizeram o que eu queria. Gostei tanto do cabeleireiro que confiei nele para picotar o cabelo! Tá curtíssimo!!!
O cabeleireiro é cearense, mas mora aqui em Altamira desde 1972, auge da colonização dirigida dos militares com a abertura da Transamazônica, outra obra faraônica, tal como Belo Monte e a tal de Belo Sun.
Sobre a Transamazônica: "Um projeto modernizador inspirado pelo desenvolvimentismo de alto impacto promovido pelo Estado no auge do Milagre Econômico e da ditadura militar. Um projeto implantado de forma discricionária, responsável pela intervenção estatal mais impetuosa e abrupta, e, portanto, violenta em termos de colonização que se tem notícia na história do país"
(Qualquer semelhança não é mera coincidência. Esse trecho é da tese de doutorado da minha querida Rosane Steinbrenner, que me orientou durante a saga do TCC. Isso é só pra você ter uma ideia e ver que não tô mentindo. Se quiser ler a tese dela, está disponível aqui: http://www.naea.ufpa.br/novosite/index.php?action=Tcc.arquivo&id=179
Quando meu mais novo cabeleireiro chegou a Altamira havia apenas um salão na cidade, onde ele cortou cabelos por 10 anos até fundar o negócio próprio. Alguns amigos militares que trabalhavam na transamazônica falaram bem da cidade. Ele veio de férias e tirou em um mês o que ganhava o ano inteiro no exército. Largou tudo e se mudou. Ele diz que foi o primeiro a trazer secador de cabelo portátil para Altamira, porque antes só usavam aqueles secadores gigantes, aqueeeles de pedestal.
Durante quase três horas de corte, pintura e hidratação conversamos sobre tantas coisas. Deixo aqui uma parte da nossa conversa:
“Aqui era muito bom. As pessoas ficavam na frente das casa. Não tinha grandes supermercados. Faltava arroz e carne algumas vezes por causa da distância, mas mesmo assim era muito bom. Deviam ter melhorado a estrutura da cidade sem essa barragem. Trazendo escolas, hospitais, mas sem Belo Monte. Porque Belo Monte não tá trazendo nada de bom, quase. Até nos negócios, que todo mundo achava que ia crescer, que todo mundo ia ficar rico, até no negócio estamos vendo que isso não é verdade. A concorrência aumenta. Chegam os grandes supermercados, farmácias e acabam com os pequenos. Sem contar que o preço de tudo aumentou, o que a gente ganha, a gente gasta. Não tinha violência, assassinatos, acidentes no trânsito, nem nada disso. Levo 40 minutos, QUA-REN-TA minutos, pra pegar minha filha no colégio por causa do trânsito e a escola dela fica a 1 quilômetro daqui do salão. Antes eu levava 5, 10 minutos. Veio um monte de gente pra cá achando que ia trabalhar na barragem, mas é pouca gente que trabalha perto desse tantão de gente que vem e ainda ganham pouco. Depois vai todo mundo embora daqui, aí eu quero ver”.
Ah, o salão dele está em uma área onde os moradores devem ser desalojados por Belo Monte: “Tem dois anos que não reformo meu salão, porque não dá vontade de reformar nada sabendo que daqui a pouco eles vão me mandar sair daqui. Estou atrás da indenização. Estão dando bem menos do que as casa valem. Às vezes pagam pelo valor de quando a casa foi comprada há sei lá quantos anos atrás. Eu já disse que não aceito menos do que quero aqui no meu salão, mas também tenho medo de recursar a proposta, porque conheço muita gente que não aceita a indenização, joga na justiça, eles não pagam nada e a pessoa acaba gastando tudo em advogado. É muito triste a nossa situação”.
Sei que esses meus relatos sempre lhe entristecem e preocupam bastante, mas relaxa, Pai!
Prepara a camisa verde amarela, a corneta e as mandingas da vovó porque diz que a Copa tá chegando e e diz que o Brasil vai ficar rico e próspero que nem Altamira. Diz que...
Abraços da sua filha torcedora ao revés.
Durante quase três horas de corte, pintura e hidratação conversamos sobre tantas coisas. Deixo aqui uma parte da nossa conversa:
“Aqui era muito bom. As pessoas ficavam na frente das casa. Não tinha grandes supermercados. Faltava arroz e carne algumas vezes por causa da distância, mas mesmo assim era muito bom. Deviam ter melhorado a estrutura da cidade sem essa barragem. Trazendo escolas, hospitais, mas sem Belo Monte. Porque Belo Monte não tá trazendo nada de bom, quase. Até nos negócios, que todo mundo achava que ia crescer, que todo mundo ia ficar rico, até no negócio estamos vendo que isso não é verdade. A concorrência aumenta. Chegam os grandes supermercados, farmácias e acabam com os pequenos. Sem contar que o preço de tudo aumentou, o que a gente ganha, a gente gasta. Não tinha violência, assassinatos, acidentes no trânsito, nem nada disso. Levo 40 minutos, QUA-REN-TA minutos, pra pegar minha filha no colégio por causa do trânsito e a escola dela fica a 1 quilômetro daqui do salão. Antes eu levava 5, 10 minutos. Veio um monte de gente pra cá achando que ia trabalhar na barragem, mas é pouca gente que trabalha perto desse tantão de gente que vem e ainda ganham pouco. Depois vai todo mundo embora daqui, aí eu quero ver”.
Ah, o salão dele está em uma área onde os moradores devem ser desalojados por Belo Monte: “Tem dois anos que não reformo meu salão, porque não dá vontade de reformar nada sabendo que daqui a pouco eles vão me mandar sair daqui. Estou atrás da indenização. Estão dando bem menos do que as casa valem. Às vezes pagam pelo valor de quando a casa foi comprada há sei lá quantos anos atrás. Eu já disse que não aceito menos do que quero aqui no meu salão, mas também tenho medo de recursar a proposta, porque conheço muita gente que não aceita a indenização, joga na justiça, eles não pagam nada e a pessoa acaba gastando tudo em advogado. É muito triste a nossa situação”.
Sei que esses meus relatos sempre lhe entristecem e preocupam bastante, mas relaxa, Pai!
Prepara a camisa verde amarela, a corneta e as mandingas da vovó porque diz que a Copa tá chegando e e diz que o Brasil vai ficar rico e próspero que nem Altamira. Diz que...
Abraços da sua filha torcedora ao revés.