a senhora sabe que desde criança essas coisas de Igreja, padre, missa nunca me animaram, né?! A senhora tentou, mas não deu. Fugi de missas, da crisma, do casamento de branco e até de alguns batizados. Só aceitei o meu batismo porque eu só tinha 4 meses e vocês pouco se importavam com o que eu queria. Tenho que confessar também que só ia às aulas de comunhão para paquerar um coroinha e de vez em quando fazia uma blasfemiazinha aqui, outra ali nos intervalos. Ah, e para completar não rezei os 3 pai-nosso e as 4 ave-maria na confissão antes da primeira comunhão.
Na última viagem que fiz, de Altamira para Jacareacanga, pensei que eu fosse morrer umas três vezes, no mínimo. Não aquele morrer desesperado e descontrolado, que nem aquele da montanha russa perigo-total do Círio, ao lado da Basílica de Nazaré, mas aquele morrer calado, reflexivo. Aquele morrer mais ou menos assim: “Devia ter ouvido minha vozinha e ter feito o concurso do Banco do Brasil”, ou “Era para eu ter ligado para casa antes de vim para cá”, ou até “Jesus amado, me perdoe por ter furado o bolo de aniversário do meu avô e ter acusado minha prima Paula... Eu tinha 8 anos e chocolate é irresistível”.
Em menos de 1 hora de viagem o ônibus quebra. Descemos. Indaguei qual o problema ao motorista. “É no freio. Galho fraco”. Mesmo temerosa, acreditei.
Vó, a carona parecia o corredor da morte!!! O cara ia chutado pela Transamazônica enlamaçada. Em vários momentos a caminhonete escorregava. De um lado, barranco. Do outro, também. Teve uma hora que a caminhonete escorregou de vez. Ficamos com uma roda inteira para o lado de fora da estrada e o motorista acelerando, acelerando. Gritaria: “Ah meu deus” pra um lado, “Jesus amado” pro outro. Foi nessa hora que pensei “É agora. Vou me apegar à Nazica. Chegou minha hora”.
Até agora não sei como, mas saímos dessa. Todos sujos de lama, é verdade, mas saímos.
A carona era só até uma parte da viagem. Praticamente metade. Passamos a noite no km 180, em um restaurante chamado “amigo do garimpeiro”. Logo quando entrei fui lavar o rosto e ouvi uma voz do meu lado:
- De onde vem essa moça toda suja?! Vai para Jacaré?
Na hora a aparência da pessoa me era bastante familiar, mas não conseguia lembrar de onde. Respondi qualquer coisa e retruquei:
- A senhora trabalha aqui?
- Não, não. Tô passando por aqui. Trabalhava em um garimpo lá no Rio das Tropas – disse ela me olhando fixamente.
Lembra quando viajei em janeiro para fazer a reportagem sobre a fiscalização que os munduruku fizeram no território deles?
Pois então, vó, a primeira pessoa que encontrei na entrada do restaurante foi uma garimpeira expulsa. Acredita nisso?!
Estremeci. Estava vendo a hora dela gritar e me dedurar para os amigos dente-de-ouro.
Sabe, dona Altamira, depois disso conversei com esse pesquisador que encontramos em Itaituba. Ele estuda há alguns anos sobre mineração no Tapajós e disse que esse meu medo faz parte de uma política de criminalização contra os garimpeiros. É uma coisa histórica intrínseca que diz “garimpeiro não presta” para dizer que “mineradora é boa, é legalzona”. Ele me disse que em uma conversa com um garimpeiro, o cara lhe disse “o garimpeiro é o trabalhador brasileiro que não desistiu”.
Já tinha ouvido isso indiretamente umas tantas vezes desde o início do ano, tanto no Tapajós quanto no Xingu, por que só agora finalmente entendi? Acho que tinha ouvido, mas não tinha escutado. Isso me chateou, confesso.
Depois dessa conversa escrevi como nota mental: “Pesquisar mais sobre criminalização dos garimpeiros” e “passar um mês em um garimpo”. Calma! Se acalme! Vou chamar o pesquisador para ir comigo. Se alguma coisa me acontecer, a culpa é toda dele.
Lá no amigo do garimpeiro encostamos a cabeça nas mesas enquanto esperávamos o ônibus-resgate que ia nos apanhar. Ele iria trazer as mochilas que haviam ficado no ônibus que quebrou. Óbvio, algumas mochilas foram perdidas pelo caminho e por incrível que pareça a minha não estava no meio. A senhora sabe que tudo acontece comigo, mas dessa vez eu escapei.
Após quase quatro dias de viagem, muitos, inclusive eu, se negaram a subir. Bateram o pé e disseram que não iriam. O capitão acelerava a voadeira com muita força entre o varador, bracinho de rio que dava até a casa do Karosakaibu. Nos seguramos nos galhos para que a voadeira não entrasse. Após uns 10 minutos nesse cabo de guerra, o capitão pulou no rio, pegou a corrente e foi puxando a voadeira de alumínio com mais de 25 pessoas nas costas. Os olhos dele estavam esbugalhados. Inacreditável, dona Altamira! Contando parece até aquelas histórias que a senhora diz que o bisa contava, mas é verdade, olha. VI com esses olhos que o rio há de levar.
Nessa hora, uma indíngena, liderança munduruku, virou para gente e disse:
- Qualquer munduruku pode receber o chamado do Karosakaibu. Se ele tá chamando vocês para irem lá, vocês vão ter que ir, senão alguma coisa ruim pode acontecer com a gente.
Vó do céu, estava bastante contrariada, mas depois que ela disse isso peguei a sandália, desci da voadeira e subi. Não pelo medo, mas pelo respeito que eles tem pelo Karosakaibu.
Imagine se a senhora convida uma amiga que mora em outra cidade para o Círio. Aí a fulana come seu pato no tucupi, compra a fitinha, pega a corda que o tio Neno sempre traz, mas decide que vai acompanhar o Círio pela televisão e nem vai ver a santinha passar. A senhora ia surtar, certamente. Pois então. Decidi subir.
A subida extremamente inclinada e cheia de pedras pontudas me lembraram um percurso de purificação. Chegando lá em cima, depois de uns 10 minutos andando, vi uma espécie de entrada no meio da montanha de arvores, um lugar cheio de oferendas. O capitão olhou para o horizonte chorando e disse:
Não resisti. Chorei também. Um choro contido, meio arrependido por todas a reclamações do caminho. Chorei e entendi o porquê de estar ali. Senti a presença do sagrado pela primeira vez. Eu não estava ali como intrusa, eu não entrei porque sou do governo ou estava ali para fazer pesquisa e favorecer interesses que não os deles. Estávamos ali porque eles queriam, porque nos convidaram. Me senti honrada e plenamente agradecida com tudo que estava acontecendo.
Depois disso a calma tomou conta de mim, vó, e nesta noite vi o luar mais bonito de toda minha vida. “Se existe o sagrado, com certeza ele está aqui”, disse uma amiga durante a viagem. Acho que é perfeitamente isso, vozinha.
Ontem descobri que estou com uma “úlcerazinha” no estômago. O médico disse que é só cuidar, parar de beber, comer direito e tomar os remédios que ela pode passar e não deixar “cicatriz” nenhuma. Agora só nos resta pedir ao Karosakaibu toda essa força de vontade dentro de mim.
Beijos já cheios de saudade, da sua neta fezuda.
ps: Desculpe não mandar fotos da casa do Karosakaibu. "Não pode tirar foto", o capitão falou.