Dona Altamira,
faz tempo que não mando notícias. Hoje deu vontade de escrever.
Ontem, depois de meses e meses de idas e vindas, finalmente acabei de ler "Abusado: o dono do morro Santa Marta". Lembra daquele livro que tinha um homem sem camisa carregando uma arma na capa?! Pois é, é esse o livro.
Sei que a senhora vai dizer: "Vixi maria, menina! Lendo essas coisas de traficante!".
Vó, não imaginas o quanto o livro é bom. Me debrucei nas páginas como há muito tempo não fazia. Acho que li as últimas 200 em 2 dias.
O Caco Barcelos (Sim! O do programa Profissão Repórter que a senhora adorava!) descreve como foi o processo antes, durante e depois do Marcinho VP se tornar chefe do tráfico no morro Santa Marta.
Durante a leitura, lembrei em vários momentos de situações de quando estava por aí.
Lembrei do dia em que um grupo de policiais caçavam a um menino que devia ter uns 16 anos. Ouvi os gritos e olhei pela janela do meu quarto que está no puxadinho que a senhora mandou fazer. O menino estava estirado no chão, cercado por policiais, na porta de casa. Levara um tiro na barriga e esperava a ambulância. Ouvia de longe a discussão dos policiais. Para eles, o julgamento já estava feito: deveria morrer. Lembro que o papai saiu correndo pela porta de casa gritando:
"Não mata! Não mata! Minha filha tá vendo tudo ali de cima".
Meu pai não é o salvador do mundo. Estava mais preocupado comigo que com o menino mais ou menos da minha idade estirado no chão.
Lembro perfeitamente do garoto sendo levado a base de pontapés e esculacho dos policiais quando a ambulacia chegou.
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"De que que adianta? Vão pegar o primeiro parecido e encher de porrada", argumentava sentada na mesa da cozinha.
"Onde já se viu defender bandido?! Essa Larissa é toda doida", resmungava o papai saindo pela porta.
Vó, pensei que tanto o menino baleado quanto os dois que entraram na sua casa poderiam ser Marcinho, Careca, Nein, ou qualquer um da quadrilha de Juliano pelos quais criei um certo carinho estes dias.
Dona Altamira, é que tu não imaginas o quanto conhecemos mais Julianos do que Temer e Aécios nessa vida.
Não acho que o Juliano e seus parceiros estão certos e tá tudo bem. Acho que algumas pessoas nascem com certos privilégios e outras não. Enquanto essa diferença de privilégios existir, alguns vão ter que roubar e traficar para viver (Não é o caso de Temer e Aécio, que fique claro).
Vó, o livro também me fez pensar nas 4 chacinas recentes em Belém só esse ano, sem contar com as do ano passado. É assustadora a ação da policia. Ontem foi na Condor, anteontem Cabanagem, amanha pode ser Cremação. Quanta gente morrendo só por morar em bairros de periferia! Tão matando preto e pobre, vó. Isso se chama extermínio.
Apesar do cenário cada vez pior, terminei de ler o livro com um sabor de feijão e arroz na boca.
O Marcinho VP, quando estava foragido na Argentina, fez o Caco Barcelos andar por quase todos os restaurantes de Buenos Aires atrás de arroz e feijão, porque era seu café da manha/almoço diário. Ficou feliz quando encontrou apenas o arroz. A combinação tradicional de brasileiros pobres/classe media virou minha preferida depois de mais de 2 anos longe de casa.
Lembra quando eu te dizia: Outra vez arroz, feijão e bife, vó?!
Agora eu daria um fígado para comer seu arroz, feijão e o bife com cebola e tomate.
O gosto de arroz e feijão veio não somente pelo prato, também porque "Abusado" é último livro em português que havia trazido na mochila.
Acho que tá na hora de voltar, né?! Pra comer o feijão e pra pegar alguns livros.
Beijos saudosos.
Da sua neta,
Larissa